quarta-feira, janeiro 06, 2010

é só deixar correr

Há muito que desejo escrever-te esta carta, como se uma força oculta fosse falando cada vez mais alto dentro do meu peito, uma voz muda que vai ganhando força e subindo até a garganta, tudo arranhando pelo caminho, inevitável e consistente, como o curso de um rio.
Quando o nosso amor nasceu, vi-o a correr muito depressa debaixo dos meus olhos e quis ir atrás dele. Perdi o meu tempo porque não percebi que era a única que o seguia. Não te vi parado, do outro lado da margem, que se ia cavando cada vez mais larga e funda, impotente ao caudal, assustado com a minha determinação, tu que só somas certezas depois de se dissiparem todas as dúvidas e preferes sempre não acreditar em ti e nos outros, até que o tempo e a sorte te vençam.
Somos o avesso um do outro. Quando dúvidas, páras, e eu sigo em frente. Quando tens medo, eu tenho vontade; quando sonhas, eu pego nos teus sonhos e torno-os realidade; quando te entristeces, fechas-te numa concha e eu choro para o mundo; quando não sabes o que queres, esperas e eu escolho; quando alguém te empurra, tu foges e eu deixo-me ir.

(…)

Estou cansada de sonhar, de esperar, de desejar, de te querer e não te ter, de nunca saber se pensas ou não em mim, se à noite adormeces com saudades no peito ou te deitas com outras mulheres. Depois de todas as palavras e de todas as esperas, fiquei sem armas e sem forças. Sobra-me apenas a certeza que nada ficou por fazer ou dizer, que os sonhos nunca se perderam, apenas se gastaram com a erosão do tempo e do silêncio.


(...)


Podias ter-me dito que ias sair da minha vida. Abria-te a porta e dizia-te adeus, como se faz a um velho amigo que vive noutro país e vem visitar-nos uma vez por ano. Dava-te um longo e quase triste abraço e pedia às estrelas que te protegessem ao longo de todas as viagens até ao fim da vida, como faço ainda hoje, quando falo com o céu da minha varanda, antes de adormecer no meu quarto imenso e azul. Faltou-me o abraço, mas as estrelas não saíram do lugar: conversamos sobre ti e elas dizem-me que estás bem.

Podias ter-me escrito uma carta, um e-mail, uma mensagem. Podias ter mandado um ramo de flores ou uma caixa de sementes com um cartão a dizer desculpa. Eu teria perdoado porque não há nada para perdoar. A paixão é mesmo isto, nunca sabemos quando acaba ou se transforma em amor, e eu sabia que a tua paixão não iria resistir à erosão do tempo, ao frio dos dias, ao vazio da cama, ao silêncio da distância.
Há um tempo para acreditar, um tempo para viver e um tempo para desistir, e nós tivemos muita sorte porque vivemos todos esses tempos no modo certo.
E agora que o Inverno se instalou, espero pacientemente que as sementes resistam ao frio e encham o meu jardim de cores e de cheiros quando a Primavera chegar. Imagino que me escondo debaixo da terra com elas, são muitas e pequenas, mas guardam a essência da vida, e a felicidade é isto: plantar o que sentimos e esperar, deixar correr os dias até passarem semanas, e aguardar que estas se alinhem em meses, ser paciente, não cobrar nem desistir, seguir em frente e desejar o melhor do mundo àqueles que amamos.

Podias-me ter dito que querias conjugar o verbo desistir. Não sei como se diz desistir na tua língua nem quero aprender, porque na minha demorei muito tempo a aceitar que, às vezes, desistir é o mesmo que vencer sem travar as batalhas. Antigamente pensava que não, que quem desiste perde sempre, que a subtracção é a arma mais cobarde dos amantes, e o silêncio a forma mais injusta de deixar fenecer os sonhos. Mas a vida ensinou-me o contrário. Hoje sei que desistir é apenas um caminho possível, às vezes o único que os homens conhecem.


(…)


Sei que também aprendeste muito comigo, mais do que imaginas e do que agora consegues alcançar. Só o tempo te vai dar tudo o que de mim guardaste, esse tempo que é uma caixa que se abre ao contrário: de um lado estás tu, e do outro estou eu, a ver-te sem te poder tocar, a abraçar-te todas as noites antes de adormeceres e a cada manhã que acordares.


(…) mas sabes uma coisa? Já não me importo, porque sempre soube que ia ser assim. Guardei-te no meu coração antes de partires.


(…)


É só deixar correr, como, afinal, tudo o que é verdadeiramente importante na vida.


Margarida Rebelo Pinto, in Vou-te Contar um Segredo

1 comentário:

Ines disse...

"Nem sempre tens tempo para mim, mas sei que posso contar contigo, que, num momento de crise, estarás ao meu lado, que voltarás sempre, porque se a vida é um eterno regresso a casa, a amizade é um amor eterno."

Margarida Rebelo Pinto