sexta-feira, setembro 19, 2008

Oh tempo, volta p'ra trás!

Quem me visse a escrever estas palavras julgaria estar na presença de uma senhora idosa, massacrada pela vida e pelas experiências, atropelada pelos longos anos e por toda esta evolução que nos rodeia. Mas não. Desenganem-se todos os que crêem em tal. Sou menina chegada há poucos dias à maioridade, mulher talvez inconformada pela brevidade da vida. Sinceramente, sinto-me velha. Não pelos 18 anos, como é obvio, ou pelo quase término da adolescência. Digo isto pela falta de adolescência que vejo nas gerações procedentes, arrisco até dizer, falta de infância.
Lembro-me do primeiro dia em que entrei na escola primária pela mão do meu pai. Era um dia daqueles em que o sol de Outono brilhava por todos os vidrinhos daquelas janelas. Olhei a professora, o quadro, o chão, tudo o que havia para olhar. Era um mundo totalmente novo. Lembro-me de não conseguir escrever a data no canto do quadro, os meus cento e poucos centímetros não me davam essa possibilidade. Lembro-me das manhãs em que acordava só para ver os desenhos animados, aqueles que realmente eram animados, de trocar as roupas das Barbie’s e de brincar aos Nenuco’s. Tenho saudade dos dias em que andava de bicicleta, saudade do triciclo e de escrever na porta da casa da avó com giz branco a imitar uma professora.
Hoje larguei o secundário, já lá vão uns bons dez anos depois disso. Pareço Fernando Pessoa com tanta nostalgia pela minha infância, mas o que é facto é que não é só a minha que está em causa. O que realmente me atormenta e me faz hoje estar aqui a dissertar sobre toda esta lengalenga é a falta de infância que eu vejo nas gerações posteriores. É triste olharmos para meninos de 9 e 10 anos que não sabem o que é brincar no parque infantil, uma vez por semana que fosse, porque ocupam o tempo com campeonatos de FIFA 2008 na PlayStation. É triste ver crianças que não conheceram um Buereré ou um Jardim da Celeste, pois nasceram na geração dos Morangos Com Açúcar ou das Chiquititas (Chiquititas em versão portuguesa, que se frize, pois «no meu tempo» a mesma série era em brasileiro e por sinal, bem mais engraçada). É decadente, com toda a força que essa palavra carrega, sair à rua e ver protótipos de mulheres e homens a reivindicar a sua pré-adolescência (venero este termo), exibindo os seus telemóveis novos topo de gama e certos de que seis meses depois outros virão. E isto choca-me. Faz-me sentir velha e enrugada, mesmo que ainda a acne me assombre às vezes. E digo isto não pela diferença de idades, mas pela diferença de mentalidades.
Hoje a palavra Infância deixou de fazer sentido. É lamentável a falta de noção desses meninos e meninas do que era uma infância a sério há uma década atrás. A culpa talvez nem lhes pertença, talvez o maior problema fora terem nascido numa geração em que o tempo é escasso, em que nem para crescer há tempo. Uma geração em que já se nasce evoluído, não se sabe o gostinho de aprender, de querer crescer e evoluir. Eu sou da geração que experimentou as fraldas descartáveis, que brincou nas ruas porque o medo não vivia nas nossas mentes e que comprou pastilhas a cinco escudos. Pertenço, e com todo o gosto, à geração que encerrou o conceito de ser criança. E tenho tanta saudade de ser criança.

quarta-feira, setembro 17, 2008

O Primeiro Amor

É fácil saber se um amor é o primeiro amor ou não. Se admite que possa ser o primeiro, é porque não é, o primeiro amor só pode parecer o último amor. É o único amor, o máximo amor, o irrepetível e incrível e antes morrer que ter outro amor. Não há outro amor. O primeiro amor ocupa o amor todo.

Nunca se percebe bem por que razão começa. Mas começa. E acaba sempre mal só porque acaba. Todos os dias parece estar mesmo a começar porque as coisas vão bem, e o coração anda alto. E todos os dias parece que vai acabar porque as coisas vão mal e o coração anda em baixo.
O primeiro amor dá demasiadas alegrias, mais do que a alma foi concebida para suportar. É por isso que a alegria dói - porque parece que vai acabar de repente. E o primeiro amor dói sempre demais, sempre muito mais do que aguenta e encaixa o peito humano, porque a todo o momento se sente que acabou de acabar de repente. O primeiro amor não deixa de parte um único bocadinho de nós. Nenhuma inteligência ou atenção se consegue guardar para observá-lo. Fica tudo ocupado. O primeiro amor ocupa tudo. É inobservável. É difícil sequer reflectir sobre ele. O primeiro amor leva tudo e não deixa nada.
Diz-se que não há amor como o primeiro e é verdade. Há amores maiores, amores melhores, amores mais bem pensados e apaixonadamente vividos. Há amores mais duradouros. Quase todos. Mas não há amor como o primeiro. É o único que estraga o coração e que o deixa estragado.
É como uma criança que põe os dedos dentro de uma tomada eléctrica. É esse o choque, a surpresa «Meu Deus! Como pode ser!» do primeiro amor. Os outros amores poderão ser mais úteis, até mais bonitos, mas são como ligar electrodomésticos à corrente. Este amor mói-nos o juízo como a Moulinex mói café. Aquele amor deixa-nos cozidos por dentro e com suores frios por fora, tal e qual num micro-ondas. Mas o «Zing!» inicial, o tremor perigoso que se nos enfia por baixo das unhas e dá quatro mil voltas ao corpo, naquele micro-segundo de electricidade que nos calhou, só acontece no primeiro amor.
O primeiro beijo é sempre uma confusão. Está tudo a andar à volta e não se consegue parar. A outra pessoa assalta-nos e deixa-nos tontos, isto apesar de ser tão tímida e inepta como nós. E os nomes dos nossos primeiros amores? Os nomes doem. Parecem minúsculos milagres. Cada vez que se pronunciam, rebenta um pequeno terramoto no equador. E as mãos? Quando a mão entra na mão de quem se ama e se sente aquele exagero de volts e de pele, a única resposta sensata é o assassínio, o exílio, o suicídio. Nada fica de fora. O mundo é uma conspiração cinzenta de amores em segunda mão. Nada é puro fora daquelas mãos. O tesouro está a arder, as pessoas estão a morrer, os olhos cheios de luz estão a cegar, mas o primeiro amor é também, e sem dúvida, o primeiro amor do mundo.
O primeiro amor é aquele que não se limita a esgotar a disposição sentimental para os amores seguintes: quer esgotá-la. Depois dele, ou depois dela, os olhos e os braços e os lábios deixam de ter qualquer utilidade ou interesse. As outras pessoas - por muito bonitas e fascinantes que sejam - metem-nos nojo. Só no primeiro amor.
Não há amor como o primeiro. Mais tarde, quando se deixa de crescer, há o equivalente adulto ao primeiro amor - é o primeiro casamento; mas não é igual. O primeiro amor é uma chapada, um sacudir das raízes adormecidas dos cabelos, uma voragem que nos come as entranhas e não nos explica. Electrifica-nos a capacidade de poder amar. Ardem-nos as órbitas dos olhos, do impensável calor de poder-mos ser amados. Atiramo-nos ao nosso primeiro amor sem pensar onde vamos cair ou de onde saltamos. Saltamos e caímos. Enchemos o peito de ar, seguramos as narinas com os dedos a fazer de mola de roupa, juramos fazer três ou quatro mortais de costas, e estatelamo-nos na água ou no chão, como patos disparados de um obus, com penas a esvoaçar por toda a parte.
Há amores melhores, mas são amores cansados, amores que já levaram na cabeça, amores que sabem dizer «Alto-e-pára-o-baile», amores que já dão o desconto, amores que já têm medo de se magoarem, amores democráticos, que se discutem e debatem. E todos os amores dão maior prazer que o primeiro. O primeiro amor está para além das categorias normais da dor e do prazer. Não faz sentido sequer. Não tem nada a ver com a vida. Pertence a um mundo que só tem duas cores - o preto-preto feito de todos os tons pretos do planeta e o branco-branco feito de todas as cores do arco-íris, todas a correr umas para as outras.
Podem ficar com a ternura dos 40 e com a loucura dos 30 e com a frescura dos 20 - não outro amor como o doentio, fechado-no-quarto, o amor do armário, com uma nesga de porta que dá para o Paraíso, o amor delirante de ter sempre a boca cheia de coração e não conseguir dizer outra coisa com coisa, nem falar, nem pedir para sair, nem sequer confessar: «Adeus Mariana - desta vez é que me vou mesmo suicidar.» Podem ficar (e que remédio têm) com o savoir-faire e os fait-divers e o «quero com vista pró mar se ainda houver». Não há paz de alma, nem soalheira pachorra de cafunés com champagne, que valha a guerra do primeiro amor, a única em que toda a gente morre e ninguém fica para contar como foi.
Não há regras para gerir o primeiro amor. Se fosse possível ser gerido, ser previsto, ser agendado, ser cuidado, não seria primeiro. A única regra é: Não pensar, não resistir, não duvidar. Como acontece em todas as tragédias, o primeiro amor sofre-se principalmente por não continuar. Anos mais tarde, ainda se sonha retomá-lo, reconquistá-lo, acrescentar um último capítulo mais feliz ou mais arrumado. Mas não pode ser. O primeiro amor é o único milagre da nossa vida - e não há milagres em segunda mão. É tão separado do resto como se fosse uma primeira vida. Depois do primeiro amor, morre-se. Quando se renasce há uma ressaca. É um misto de «Livra! Ainda bem que já acabou!» e de «Mas o que é isto? Para onde é que foi?».
Os outros amores são maiores, são mais verdadeiros, respeitam mais as personalidades, são mais construtivos - são tudo aquilo que se quiser. Mas formam um conjunto entre eles. O segundo e o terceiro e o quarto, por muito diferentes, são mais parecidos. São amores que se conhecem uns aos outros, bebem copos juntos, telefonam-se, combinam ir à Baixa comprar cortinados. O primeiro amor não forma conjunto nenhum. Nem sequer entre os dois amantes - os primeiros, primeiríssimos amantes. Acabam tão separados os dois como o primeiro amor acaba separado dos demais. O amor foi a única coisa que os prendeu e o amor, como toda a gente sabe, não chega para quase nada. É preciso respeito e bláblá, compreensão mútua e muito bláblá, e até uma certa amizade bláblá. Para se fazer uma vida a dois que seja recompensadora e sobretudo bláblá, o amor não chega. Não se vive só dele. Não se come. Não se deixa mobilar. Bláblá e enfim.
Mas é por ser insustentável e irrepetível que o primeiro amor não se esquece. Parece impossível porque foi. Não deu nada do que se quis. Não levou a parte nenhuma. O primeiro amor deveria ser o primeiro e esquecer-se, mas toda a gente sabe, durante o primeiro amor ou depois, que é sempre o último.
Afinal nem é por ser primeiro, nem é por ser amor. A força do primeiro amor vem de queimar - do incêndio incontrolável - todas aquelas ilusões e esperanças, saudades pequenas e sentimentos, que nascem em nós com uma força exagerada e excessiva. Como se queima um campo para crescer plantas nele. Se fôssemos para todos os outros amores com o coração semelhantemente alucinado e confuso, nunca mais seríamos felizes. É essa a tristeza do primeiro amor. Prepara-nos para sermos felizes, limando arestas, queimando energias, esgotando inusitadas pulsões, tornando-nos mais «inteligentes».
É por isso que o primeiro amor fica com a metade mais selvagem e inocente de nós. Seguimos caminho, para outros amores, mais suaves e civilizados, menos exigentes e mais compreensivos. Será por isso que o primeiro amor nunca é o único? Que lindo seria se fosse mesmo. Só para que não houvesse outro.
Miguel Esteves Cardoso - Os Meus Problemas (1988)

Sem ar - D'Black




'Eu corro p'ro mar p'ra não lembrar você
E o vento me traz o que eu quero esquecer
Entre os soluços do meu choro eu tento te explicar
Nos teus braços é o meu lugar
Contemplando as estrelas, minha solidão
Aperta forte o peito, é mais que uma emoção
Esqueci do meu orgulho pra você voltar
Permaneço sem amor, sem luz, sem ar'

sexta-feira, setembro 12, 2008

Resposta

Sinto saudade. Saudade de uma infinidade de coisas. Saudade de olhar-me ao espelho e desejar-me bonita para te encontrar, de ansiar a cada segundo pela tua presença, de sentir a tua presença. Tenho saudade de quando sabia que estavas comigo em qualquer momento, de sentir o desejo, o amor, a vontade e o querer. Relembro a cada dia a memória mais recôndita, aquela que já se julgava esquecida mas que mesmo assim atropela qualquer pensamento quotidiano e me deixa presa a ti de novo. Relembro os momentos em que as palavras não existiam e só os gestos tinham livre-trânsito na história da nossa vida. Voltam os minutos e as horas em que o mundo ao redor parava, em que eu e tu ficávamos ligados por um sentimento forte, tão forte que nem o teu orgulho o consegue esconder de mim. Hoje pode ter adormecido, pode até estar tão latente que quase morto esteja, mas os teus olhos são os mesmos de há três anos atrás. Tu és o rapaz por quem me apaixonei, a quem dei tudo o que havia e o que a mim fiquei a dever, eu conheço-te e sei os teus medos, os teus desejos e vontades. Hoje eu sei o teu maior medo, eu sei porque te sinto, porque a cada partida que este destino feio nos prega, eu sei o que pensas, no que reflectes e o que anseias, mas também sei o que os teus olhos nunca me vão conseguir negar. O mundo pode mudar, o futuro pode ser conjugado de outra forma, mas o teu passado estará sempre lá, cruzado com o meu, ligado a ele pelas cordas mais fortes. Só não entendo porque é que a vida insiste em misturar todos os tempos.

Wish

"Meu Deus, Dai-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as que posso e sabedoria para distinguir umas das outras."

Friedrich Octinger/Reinhold Niebuhr